sexta-feira, 25 de julho de 2025

anti-intelectualismo: o orgulho de ser ignorante

 


Anti-intellectualism in American Life é um livro-ensaio que explora vários aspectos do caráter americano. Foi escrito pelo historiador e professor da Universidade Columbia, Richard Hofstadter, em 1963, pela editora New York Alfred A. Knof, 434p. Ele ganhou duas vezes o Prêmio Pulitzer.

O livro é divido em 6 partes e 15 capítulos:
  1. A primeira parte é a introdução geral do tema.
  2. A segunda parte apresenta a influência da religião na cultura anti-intelectual. Estudar a Evolução, ciências no geral, história, filosofia, sociologia,etc. vão contra os preceitos bíblicos. Se a educação libertar, o pastor vai perder o rebanho e o que mais importa para ele, o dízimo e as ofertas. 
  3. A terceira parte mostra a influência política e de políticos. Eleitor bom é aquele que não sabe votar, que cai em qualquer fake news, não tem um mínimo de pensamento crítico.
  4. A quarta parte fala de business, os capitalistas milionários que visam apenas o lucro a qualquer custo, mas precisam que o proletariado seja ignorante o suficiente para não compreender seus direitos trabalhistas, muito menos as obras de Marx, vai que de repente eles tomam os meios de produção e dividem o lucro entre eles.
  5. A quinta parte fala sobre educação em uma democracia, é a mais importante, pois é a única capaz de combater tudo que foi citado nas partes anteriores. Portanto, é do interesse deles desmantelar as escolas, universidades e tratar os professores como inimigos.
  6. A sexta parte e última é a conclusão.

Se eu fosse resumi-lo em um parágrafo seria: o anti-intelectualismo é um projeto criado por homens ricos, brancos, fundamentalistas cristãos, conservadores, racistas, misóginos e homofóbicos para manter o povo na ignorância. Usam o aparato do estado para fins políticos, religiosos e de negócios (vide bilionários) defendendo unicamente seus próprios interesses. É isso! Pode subir os créditos:
Poderia terminar por aqui, mas preciso demonstrar o que ele pesquisou. Embora o livro tenha sido escrito há 61 anos, ele não está datado, pelo contrário, a situação só piorou como podemos observar agora em 2025.
Quando eu disse acima que era um projeto, se você ler as 900 páginas do “Projeto 2025” que a atual administração estadunidense adotou, verá que consta tudo o que mencionei acima. Neste artigo do The Guardian tem um resumão do que se trata.
Se esse projeto ficasse só por lá mesmo, não seria o problema para o resto do mundo, mas ele foi feito para exportação, eles têm seus representantes, os vassalos traidores e vendidos que vemos em nossa pátria.

Uma das justificativas para o subdesenvolvimento intelectual estadunidense vem da época da colonização, não tinham tempo para estudar, mas tinha para matar os povos nativos e roubar suas terras:
“Mas homens e mulheres vivendo em condições de pobreza e trabalho árduo, enfrentando os perigos de ataques indígenas, febres, e criados à base de uísque e brigas, não podiam pagar pela educação e cultura; e achavam mais fácil rejeitar o que não podiam ter do que admitir a falta disso como uma deficiência neles mesmos”.

O fundamentalismo religioso


O fundamentalismo religioso expressa um conjunto de crenças baseadas em uma interpretação literal de um manuscrito considerado sagrado, com uma exigência intransigente de submissão a uma doutrina. Esse tipo de fundamentalismo afirma uma religião enquanto rejeita outras como falsas. Muitas vezes, leva à intolerância, à exclusão e, em casos extremos, à violência.

O termo "fundamentalista" se aplica a fiéis de várias religiões, especialmente judeus ultraortodoxos, muçulmanos e cristãos tradicionalistas. Eles frequentemente se consideram os únicos guardiões de verdades antigas, alegando representar a essência de sua fé. No entanto, essa mentalidade deixa pouco espaço para diálogo ou colaboração. 

Antídoto: Estado laico. Já fiz o resumo do que isso significa, no post de pensamento crítico.

Para quem tiver interesse de como isso ocorre no Brasil, assista ao novo documentário da Petra Costa, Apocalipse nos trópicos, disponivel na Netflix.

Na segunda parte do livro, intitulada "The religion of the heart", o autor demonstra em três capítulos a interferência dos evangélicos (aquele povo da Bible Belt) na política estadunidense. 

Na cultura moderna, o movimento evangélico tem sido o mais poderoso portador desse tipo de anti intelectualismo religioso e de seu impulso antinomiano.

Toda vez que leio algo sobre fundamentalismo cristão, eu me sinto na obrigação de criar uma collage fanart para Nietzsche, pois eles são é exatamente o que foi dito em O Anticristo, ja fiz resumo deste livro aqui.

Clique na imagem para ampliá-la

A oração de um evangelista chamado Billy:

“Senhor, salva-nos do cristianismo descuidado, flácido, frágil, de joelhos fracos, de pele fina, maleável, plástico, sem espinha dorsal, efeminado e ossificado, de três quilates.” 

Sunday queria acabar com a ideia “de que ser cristão tira o homem do turbilhão da vida e das atividades mundanas e o torna uma figura covarde e efeminada”. Ele adotou um tom rooseveltiano em sua afirmação: “A guerra moral endurece o homem. A paz superficial torna o homem mole”; e resumiu seu temperamento ao confessar: “Não tenho interesse em um Deus que não castigue. 

Só acho que tanto Billy quanto Sunday eram sadomasoquistas e homofóbicos. Essa gente não sabe viver em paz e nem deixar os outros em paz. Mais abaixo vou deixar mais exemplos de misoginia e homofobia, porque este caras precisam provar a todo instante que é macho.

As pérolas que saem da boca destes seres:

Se tivermos que abrir mão da religião ou da educação, devemos abrir mão da educação.

Se eu tivesse um milhão de dólares, doaria 999.999 dólares para a igreja e 1 dólar para a educação.

John Washington Butler, o legislador batista primitivo do Tennessee que apresentou a lei contra o ensino da evolução naquele estado, o fez porque ouviu falar de uma jovem em sua própria comunidade que havia ido para uma universidade e retornado evolucionista.

Não existe outro livro que seja necessário para qualquer pessoa ler e, portanto, sou contra todas as bibliotecas.

 Mais abaixo tem um tópico sobre o papel da mulher na educação e o ódio masculino pelo conhecimento.

Vemos que o homem criou Deus à sua imagem e semelhança, escreveu as “escrituras sagradas” em benefício próprio. Autodenominou-se o representante de Deus na terra e em nome dele, se sente no direito de cometer todo tipo de atrocidade, pois tem o domínio da mulher, dos animais e da terra, endossando ainda mais o sistema patriarcal, porém disfarçado de religião.

A consequência é que "o homem continua sendo o centro da religião e Deus é seu auxílio, em vez de seu juiz e redentor".

A assombração do comunismo


No 1o capítulo, intitulado Anti-intellectualism in our Time, ele dá vários exemplos de políticos, incluindo presidentes que fazem questão de lutar contra o conhecimento, o pensamento crítico, a ciência e a educação. Um político de Michigan, chamado George Dondero, fazia cruzadas contra o comunismo nas escolas, também era contra o cubismo, expressionismo, dadaísmo, futurismo e outros movimentos de arte. Dizia que a arte dos -ismos era uma arma da Revolução Russa. 
Todos esses -ismos são de origem estrangeira e realmente não deveriam ter lugar na arte americana.
Exceto os -ismos de capitalismo, colonialismo, fundamentalismo, racismo, classismo, pois estes eles adoram. 
Não só políticos mal-intencionados, os pastores evangélicos também fazem cruzadas contra a intelectualidade e têm pavor dos -ismos, sobrou até para Freud:
No lugar da Bíblia, cultivamos a razão, o racionalismo, a cultura da mente, o culto à ciência, o poder de ação do governo, o freudianismo, o naturalismo, o humanismo, o behaviorismo, o positivismo, o materialismo e o idealismo. Este é o trabalho dos chamados intelectuais. Milhares desses "intelectuais" declararam publicamente que a moralidade é relativa — que não existe norma ou padrão absoluto.

Os conservadores dizem que os liberais sao comunistas quando eles apresentam alguma proposta que beneficiam o povo: 

Os liberais apoiam medidas que são, para todos os efeitos práticos, socialistas, e o socialismo nada mais é do que uma variante do comunismo, que, como todos sabem, é ateísmo.

As universidades, particularmente as mais conhecidas, eram constantemente apontadas como alvos por críticos de direita; mas, de acordo com um escritor do Freeman, parece ter havido apenas uma razão arbitrária para essa discriminação contra a Ivy League, visto que ele considerava que o comunismo está se espalhando em todas as nossas faculdades:

Nossas universidades são os campos de treinamento para os bárbaros do futuro, aqueles que, sob o disfarce de erudição, surgirão carregados de forcados de ignorância e cinismo, e apunhalarão e destruirão os resquícios da civilização humana. Não serão os camponeses do metrô que derrubarão os muros: eles apenas cumprirão as ordens de nossos irmãos eruditos... que apagarão a Liberdade individual dos registros do pensamento humano...

Se você enviar seu filho para as faculdades de hoje, criará o carrasco de amanhã. 

Business e anti-intelectualismo


Os homens de negócios não gostam das críticas feitas pelos intelectuais:

Chamberlain reclamou na Fortune que os romancistas americanos têm cometido constantes injustiças contra os empresários americanos. Em toda a ficção americana moderna, ele apontou, o empresário é quase sempre retratado como grosseiro, filisteu, corrupto, predador, dominador, reacionário e amoral.

Os valores dos negócios e do intelecto são vistos como eterna e inevitavelmente em desacordo: de um lado, há o homem centrado no dinheiro ou no poder, que se importa apenas com a grandeza e o dólar, com a ostentação e o otimismo vazio; do outro lado, há os homens de intelecto crítico, que desconfiam da civilização americana e se preocupam com a qualidade e os valores morais. O intelectual está bem ciente do elaborado aparato que o empresário usa para moldar nossa civilização aos seus propósitos e adaptá-la aos seus padrões.

As circunstâncias da era industrial nos Estados Unidos deram ao empresário uma posição tão central e poderosa entre os inimigos da mente e da cultura que outros antagonistas foram excluídos.

Os empresários trouxeram aos movimentos antiintelectuais mais força do que qualquer outra força na sociedade. "Este é essencialmente um país de negócios".

Durante pelo menos três quartos de século, os negócios foram estigmatizados pela maioria dos intelectuais americanos como o inimigo clássico do intelecto; os empresários.

O magnata do petróleo que não via valor em ter alunos "debruçados sobre línguas mortas e mofadas, aprendendo as histórias repugnantes dos deuses míticos e todas as coisas bárbaras do passado morto".


Masculinismo e misoginia: o odio às mulheres e a tudo que é considerado feminino ou afeminado


Como surgiu o culto ao homem bem-sucedido, conhecido também como homem pobre que paga pau para milionário, pois acha que um dia será como ele ou como disse Paulo Freire, o sonho do oprimido de ser opressor:
Queremos que as histórias dos nossos homens bem-sucedidos sejam expostas diante de nós, para que possamos conhecer os caminhos pelos quais eles se destacaram no meio do povo.
A ideia do homem bem-sucedido não era nova. Era um desdobramento histórico das pregações puritanas e da doutrina protestante da vocação.
Esse tipo de homem prefere defender o "Kiko dos foguetes" a defender pessoas de sua própria classe social, imagine chegar ao ponto de negar sua própria condição em beneficio dos ricos, torcer pelo sucesso deles enquanto está na merda. Os ricos ficam felizes com gente assim, pois sabem que não irão para guilhotina tão cedo.

Homem de verdade não pode ser inteligente, estudar, ler ou tornar-se escritor. isso é coisa de gay. Homem que é homem não usa o intelecto, usa a força. Ele precisa performar masculinidade o tempo inteiro, pois não pode deixar escapar nada considerado afeminado. Precisa estar vigilante, pois a masculinidade é tóxica e frágil, melhor juntar às forças armadas a ter que ir à universidade “ser doutrinado”.
Como li no Kobo, procurei na busca e a palavra affeminate apareceu doze vezes, sem falar em outras como: homossexual, fruity, assexuado, terceiro sexo, etc. Nunca tinha visto tanto vocabulário relacionado com a falta de masculinidade, estou grifando estas partes em rosa, assim como deixei o texto em rosa para ficar mais feminino ainda:
Eles chamavam, em sua cruzada contra os humanistas literários, de "literatura de fadas". Michael Gold disse certa vez a Sinclair Lewis que escritores desse tipo nutriam uma "inveja louca" por terem sido "privados de experiências masculinas". No curso de uma famosa vingança literária contra Thornton Wilder, Gold acusou o romancista de propagar uma "religião pastel, pastiche, diletante, sem o verdadeiro sangue e fogo neuróticos, um devaneio de figuras homossexuais em trajes graciosos movendo-se arcaicamente entre os lírios".

Um escritor ficou surpreso quando um líder do partido se referiu à sua poesia e contos como seu "hobby" para atividades extracurriculares — uma ilustração reveladora da concepção partidária de cartas como fundamentalmente pouco sérias. O pior de tudo era a falta de masculinidade em escritores que não lidavam com as duras realidades da luta de classes.
Pode-se afirmar que os intelectuais são pretensiosos, convencidos, efeminados e esnobes; e muito provavelmente imorais, perigosos e subversivos.

O irritadiço senador Ingalls, do Kansas, furioso com a falta de lealdade partidária deles, certa vez os denunciou como "o terceiro sexo" — "efeminados sem serem masculinos ou femininos; incapazes de procriar ou gerar; sem fecundidade nem virilidade; dotados do desprezo dos homens e do escárnio das mulheres, e condenados à esterilidade, ao isolamento e à extinção".

Sua cultura e maneiras meticulosas foram tomadas como evidência de que esses "cavalheiros piegas e bonzinhos" que "tomam chá frio" eram deficientes em masculinidade. Em algumas ocasiões, foram denunciados como "hermafroditas políticos".

Invocando um preconceito bem estabelecido do homem americano, os políticos argumentaram que a cultura é impraticável e os homens cultos são ineficazes, que a cultura é feminina e os homens cultos tendem a ser efeminados. 
A dessexificação, até mesmo a desumanização, foi um dos temas centrais de The Bostonianos. Assim como Bushnell, James temia que o mundo masculino fosse destruído pela agressividade perversa das mulheres e dos princípios femininos.

A associação de intelectualidade e estilo com efeminação que observei em relação aos reformadores da Era Dourada, reapareceu na campanha de 1952.

Os políticos intelectuais sofreram todo tipo de bullying pelos colegas e pela mídia: 

O New York Daily News chegou a chamá-lo de Adelaide e o acusou de "trinar" seus discursos com uma voz "frutada". Sua voz e dicção foram convertidas em objetos de suspeita — "palavras de xícara de chá", dizia-se, reminiscentes de "uma solteirona refinada que nunca consegue esquecer que tirou nota A em dicção na Escola de Acabamento da Srta. Smith".

Ser ativo na política era assunto de homem, enquanto estar envolvido em movimentos de reforma (pelo menos nos Estados Unidos) significava associação constante com mulheres agressivas, reformistas e moralistas — veja o caso dos abolicionistas. A ideia masculina comum, tão frequentemente ouvida no debate sobre o sufrágio feminino, era que as mulheres se sujariam e se dessexualizariam se entrassem no inevitavelmente sujo mundo masculino da atividade política.  
Diz-se que o (Presidente) Wilson trouxe à presidência o temperamento do acadêmico, com seus defeitos e virtudes. Ele acreditava em pequenos negócios, economia competitiva, colonialismo, supremacia anglo-saxônica e branca, e em um sufrágio restrito aos homens, muito depois de tais crenças se tornarem objetos de análises críticas mordazes. A partir do momento em que assumiu a presidência de Princeton, em 1902, ele deixou de tentar se manter atualizado com os desenvolvimentos no mundo das ideias. Em 1916, ele confessou francamente: “Não leio um livro sério há quatorze anos”.

Nos dias de hoje, há várias pesquisas afirmando que homens estudam menos, lêem menos, etc. Vou deixar aqui uns vídeos feito por homens falando sobre o assunto e tentando convencer os jovens a lerem:

Jared Henderson, How to Start Reading Again

Lawrence Debbs, Why Men Don't Read Books Anymore

John A. Douglas, No books for men? Nah, mate

Pedagogia é coisa de mulher 

No "livro dos disparates", na lenda da criação, Eva viu o quão desprovido de inteligência Adão era que preferiu desobedecer Deus e dar o fruto do conhecimento para ele, porque conviver com gente burra é literalmente padecer no paraíso. Portanto, ela é culpada por trazer o conhecimento aos homens, logo, os religiosos precisam combater a ciência e o conhecimento para fazer a vontade de um suposto deus.

Nos EUA, a educação é feminina porque a mulher aceita ganhar pouco, ganha menos que um lixeiro, por isso quando um homem que está na área de ensino automaticamente é chamado de gay:

Nos Estados Unidos, onde o ensino foi identificado como uma profissão feminina, ele não oferece aos homens a estatura de um papel masculino plenamente legítimo. A convicção masculina americana de que educação e cultura são preocupações femininas é, portanto, confirmada, e sem dúvida parcialmente moldada pelas experiências dos meninos na escola. Muitas vezes, não há modelos ou ídolos masculinos suficientes entre seus professores, cujo desempenho transmita a sensação de que o mundo da mente é legitimamente masculino, que possam lhes dar exemplos masculinos de investigação intelectual ou vida cultural.

Os Estados Unidos são o único país do mundo ocidentalizado que colocou sua educação elementar quase exclusivamente nas mãos de mulheres, e sua educação secundária, em grande parte. Em 1953, este país era praticamente o único entre as nações do mundo na feminização de seu ensino: as mulheres constituíam 93% de seus professores primários e 60% de seus professores secundários. Apenas um país na Europa Ocidental (a Itália, com 52%) empregava mulheres para mais da metade de seu corpo docente do ensino médio.

Opositores das professoras ainda eram ouvidos em muitas comunidades, mas frequentemente eram facilmente silenciados quando se apontava que as professoras poderiam receber um terço ou metade do salário dos homens. Eis uma resposta à grande busca americana por educar a todos, mas de forma barata.

Um dia, o público descobre que uma cidade em Michigan paga a seus professores US$ 400 por ano a menos do que seus coletores de lixo.

Os meninos crescem pensando nos professores homens como algo efeminado e os tratam com uma curiosa mistura de deferência gentil.

De fato, o tipo intelectual de educação pode ser significativo apenas para uma minoria: "A verdade é que, na grande maioria dos seres humanos, o interesse distintamente intelectual não é dominante. Eles têm o chamado impulso e disposição práticos." Por essa razão, tantos jovens abandonam a escola assim que aprendem os rudimentos da leitura, da escrita e do cálculo.

É muito fácil culpar o resto do mundo pelas mazelas causadas por estes tipos de homens, para eles que tudo é pecado e todo mundo é gay e comunista.

Outros videos interessantes:

O que é um doutor ? | Combatendo o anti-intelectualismo

Pirulla, O mundo assombrado pelos demônios


terça-feira, 8 de julho de 2025

O método autodidático de aprendizagem do francês do tradutor de Zélia Gattai e Jorge Amado

 Zélia Gattai e Jorge Amado relataram a história deste professor / tradutor nos seguintes livros:

  • Jardim de Inverno, de Zélia Gattai, Companhia das Letras, 296 p.
  • Navegação de cabotagem - apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de Jorge Amado, Cia das Letras, 508 p.


É sobre um professor mongol que aprendeu francês sozinho, nos anos 50. Os recursos eram bem limitados, mas ele aproveitou o que estava disponível na biblioteca e no rádio

Relato de Jorge Amado: 

“Sozinho, sem professor, sem escola, sem Aliança Francesa sem curso de qualquer espécie, aprendera a língua que o seduzira ouvindo as transmissões em francês da rádio soviética. Descobriu na Biblioteca Nacional uma gramática francesa — de tanto a estudar ele a sabia inteira, de memória — e três livros em francês dois romances de Alexandre Dumas, Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, o terceiro era um tratado de vinhos e queijos. Ele os lera e relera dezenas de vezes, os decorara, conhecia na ponta da língua d'Artagnan”.

O relato da Zélia está disponível no fim desta postagem, pois ela conta com mais detalhes a vida deste professor que achei ser uma pessoa incrivel. 

Hoje está bem mais fácil aprender um idioma sozinho, se você não tem condições financeiras para comprar um livro novo, vai no sebo que é mais barato, na biblioteca ou tenta achar materiais disponíveis na internet. Estas dicas servem para o aprendizado de qualquer idioma. Eis aqui a receita do que o tradutor utilizou:

  • Tempo e disposição para se dedicar.
  • Um livro de gramática completa, disponível na biblioteca.
  • Dois calhamaços de obras literárias de Alexandre Dumas: Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo
  • Uma revista especializada em um assunto.
  • Uma rádio com a programação em francês para escutar os nativos falando.

Meu adendo para estudar nos dias atuais:

Planejamento: Você precisa planejar um horário para estudos e torná-lo em um hábito. Sem organização e comprometimento fica difícil conquistar qualquer coisa nesta vida. Não existe milagre, existe dedicação.

Reserve uma hora, 3x por semana (ou mais se você tiver mais tempo) para estudar gramática + 30 min por dia para ler um livro. Nos dias em que você não estiver estudando gramática, escute um podcast ou assista a um vídeo no Youtube, um filme ou decore uma música no idioma que você está aprendendo.

Livros de gramática: Faça suas anotações de gramática e todos os exercícios em um caderno à parte, pois escrever ajuda a memorizar. Terminou o livro? Recomece quantas vezes forem necessárias. Se o seu livro ou coleção dividida por níveis cobre toda a gramática, você não precisa de outro. Para o estudo do francês, eu recomendo os livros da editora CLE International, Grammaire progressive du français. Se você fizer todos os exercícios, do nível básico ao avançado, você já aprendeu tudo o que um nativo também aprendeu na escola.

Para estudar inglês de forma autodidata, recomendo a coleção English for Everyone, da DK, do nível básico ao avançado. Tem o livro de gramática, o livro de exercícios, os exercícios corrigidos no final e o app de áudio para baixar.

Use a técnica de repetição espaçada que nada mais é que uma revisão do que você estudou. A primeira revisão 24h depois, em seguida uma semana depois e um mês depois para reter as informações a longo prazo. Não adianta nada fazer um capitulo por dia e acabar o livro em um mês, você precisa recapitular de tempos em tempos para o seu cérebro guardar. 

Se tiver dúvidas gramaticais, o que mais tem é professor de idiomas ensinando no Youtube, veja qual deles tem um método que combine com seu jeito de aprender. Não precisa seguir todos os canais de aprendizagem do idioma. Seja específico no motor de busca, se sua dúvida for sobre “subjonctif” por exemplo, escreva isso na busca e só vai aparecer vídeos tratando desse tema.  As pessoas ficam perdidas com a falta, mas também com o excesso de informação, por isso vá direto ao ponto e evite distrações. Eu gosto muito do canal Apprenez français avec Vincent, lá tem tudo e mais um pouco. 

Estes livros, antigamente vinham com um cd, hoje tem um aplicativo de áudio para fazer download. Repita em voz alta esses áudios usando o método japonês ondoku (repetição em voz alta) e o método shadowing (você vai repetindo e imitando o jeito de um nativo enquanto ele fala).

No ondoku, você repete o áudio com o texto 5x, depois leia em voz alta o texto sem o áudio 15x, em seguida repita o áudio sem o texto 5x e por último shadowing (repete junto com o áudio) 5x. Grave este processo, porque escutando a gravação, você percebe se está cometendo algum erro.

Literatura: Você só vai entender os calhamaços quando tiver uma base sólida de gramática e vocabulário, comece com livros infantis para não desanimar e depois, com o tempo, invista em livros grandes. Porém, se você é como o tradutor do Jorge Amado, não tem medo de calhamaço, não gosta de pequenas doses homeopáticas e já quer cair de boca no jeito mais difícil, mas não impossível, fica a seu critério. Ele viveu em tempos de guerra, não ia ser um calhamaço do Dumas que iria assustá-lo. Ele também não tinha internet, nem redes sociais, ou seja, quem era organizado e gostava de estudar, não tinha o tempo roubado com futilidades e distrações.

O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas tem quase 2000 páginas. É um livro que já está em domínio público e pode ser baixado legalmente e gratuitamente neste site da TV5 Monde. Este site têm muitos livros, todos em francês, escolha um que combina com seu gosto pessoal, não tem nem como arranjar desculpas de que “pobre não tem acesso aos clássicos da literatura francesa”.

Para quem estuda inglês, tem o site do Project Gutenberg, com mais de 75.000 livros gratuitos.  

Aplicativos gratuitos de audiobooks: Librivox, pessoas voluntárias lêem os livros que estão em domínio público, lá tem O Conde de Montecristo, você pode ler o livro e ouvir o audiobook ao mesmo tempo, se quiser, pode utilizar os métodos ondoku e shadowing.

ReadEra https://readera.org/ é um aplicativo gratuito, não precisa de inscrição e não tem publicidade. Você coloca seu livro eletrônico em qualquer formato: .epub .pdf, .doc, .mobi, entre outros e além de lê-lo no aplicativo, tem a opção de áudio também. A voz é robótica, mas a pronúncia é correta. 

Eu prefiro o Librivox que é lido por pessoas, mas o livro não vem acoplado, você tem que ler em papel ou no seu e-reader. Já o ReadEra, você coloca o arquivo do livro e aciona o áudio, ou seja, lê e escuta no mesmo lugar, porém com a voz mecânica.

Não tenha pressa, não é uma competição, você precisa de tempo para processar tudo, uma página por vez, só depois de entender o contexto, as palavras até então desconhecidas, você vira a página. A primeira leitura é de descobrimento, você pode ler em voz alta ou shadowing, isso leva tempo, uma página por dia no começo já é o suficiente. A segunda leitura você já não tem dúvidas de gramática nem de pronúncia, você vai focar na literatura, no enredo, nos personagens, etc. Faça um resumo de cada capítulo para treinar a escrita, escreva as passagens que você gostou e no fim, faça um resumo do livro.

Revista especializada: No site Internet Archive tem livros, filmes, músicas, jogos, etc. É um compilado de arquivos de tudo que foi criado digitalmente. Lá tem muitas revistas em vários idiomas, procure uma com um assunto que te interessa, por exemplo: cinema, música, informática, culinária, atualidades, etc. Leia um artigo, faça um resumo, fale em voz alta sobre o que você acabou de ler, como se estivesse explicando para alguém.

Para escutar: Hoje em dia é muito fácil ter acesso a áudios, no Spotify tem músicas, podcasts, audiobooks em quase todos os idiomas. No youtube tem vídeos com vlogs, vídeo-ensaios, receitas, moda, atualidades, fitness, aulas, seminários, etc. Escolha um tema que te apetece.

Relato da Zélia Gattai, no capítulo “O Professor de Ulan-Bator, Mongólia”

Professor de escola primária num bairro distante, radioamador nas horas vagas, uns 35 anos de idade, o tradutor que nos traziam cumprimentou-nos com gentileza: o rosto impassível, as mãos trêmulas.

Soubemos depois a sua história: aprendera o francês sem professor, sozinho. Costumava ouvir as emissões em francês da Rádio Moscou, apreciava as músicas francesas, achava aquela língua lindíssima e resolvera dominá-la. Recorreu à Biblioteca Nacional, encontrou pouca coisa em francês, quase nada, o suficiente, no entanto, para satisfazer a sua obstinação. O fundamental, a gramática francesa, estava lá, além de um livro sobre pecuária e um romance: O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Estudou e aprendeu a gramática; leu e releu o livro sobre pecuária, ficou entendido em bovinos, caprinos e ovinos; adorou O Conde de Monte Cristo, leu e releu vezes sem fim o romance de Dumas; passou a entender o que transmitiam os programas de francês, da Rádio Moscou mas, hélas, jamais falara a língua, nem uma única palavra. Falar com quem?

O pessoal da biblioteca dera a pista ao serviço de informações do governo.

Foram pescá-lo quando lecionava na pequena escola primária. Não havia tempo para muitas explicações: "Interrompa a aula, o camarada vai ter que nos acompanhar." Levavam um terno de roupa mais ou menos de suas medidas -segundo Jorge, o governo mongol possuía um estoque de roupas ocidentais para eventuais necessidades, como essa, por exemplo. "Mude a roupa e venha conosco, pois o camarada vai servir de intérprete de francês a Jorge Amado, escritor brasileiro, Prêmio Internacional Stalin." O nome de Jorge Amado não lhe recordava grande coisa, tinha uma vaga lembrança de tê-lo ouvido numa emissão e não chegava a impressioná-lo, mas o título de Prêmio Internacional Stalin buliu com ele. "Iremos daqui para o Palácio do Governo, onde o Primeiro-ministro nos espera." Primeiro-ministro? Agora, sim, ele estremecera. Ao ver o intérprete enfatiotado, pronto para segui-los, os emissários, dando por cumprida a tão difícil tarefa, respiraram aliviados: "Ufa!", disseram. "Ufa!", disse eu, ao vê-lo chegar: a pátria estava salva.

No gabinete do Primeiro-ministro, começou falando lentamente, medindo cada frase, cada palavra, refletindo antes de proferi-las… Nós tratamos de deixá-lo à vontade, e na visita ao Parlamento, logo em seguida, traduzindo os discursos, ele já tremia menos; aos poucos foi ganhando terreno e confiança, revelou-se um excelente tradutor.

Em tão poucos dias nos tornáramos íntimos do professor primário, do homem que, para nos servir, fizera das tripas coração, falara francês pela primeira vez na vida. Nos abraços da despedida, estávamos todos comovidos. Entre a emoção e o encabulamento, nosso tradutor pediu a Jorge que lhe fizesse assinaturas das revistas editadas em francês, na União Soviética. Não tenho dúvidas de que das coisas que mais prazer deu a Jorge foi mandar para nosso amigo mongol quantidade de livros editados em francês na União Soviética, fazer assinaturas em seu nome, por três anos, das revistas: Littérature Soviétique, Problèmes du Sócialisme e Temps Nouveaux.

Naquele mesmo ano de 1952, no mês de dezembro, Jorge voltou à Europa e encontrou-se com o camarada Ministro numa reunião do Conselho Mundial da Paz, em Viena. Perguntou-lhe por nosso amigo, tradutor de francês. Teria voltado a lecionar na sua escolinha? O amigo Ministro — em breve ele viria a ser Primeiro-ministro da Mongólia — respondera com uma gostosa gargalhada: "Professor primário? Está louco? Uma preciosidade dessas não se joga fora… Ele é hoje chefe do departamento de francês do Ministério do Exterior. Resultado de tua visita."


sábado, 14 de junho de 2025

Literatura BRICS: Relatos de viagem de escritores brasileiros na URSS e China. Parte 2: Jorge Amado e Zélia Gattai

Nesta publicação, continuidade da anterior, irei comentar sobre dois livros que relatam as viagens de Zélia Gattai e Jorge Amado na URSS e China:

  • Jardim de Inverno, de Zélia Gattai, Companhia das Letras, 296 p.
  • Navegação de cabotagem - apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de Jorge Amado, Cia das Letras, 508 p.

"Jardim de Inverno" é um livro de memórias no exílio de Zélia Gattai. Em 1947, começo da Guerra Fria, Jorge Amado era deputado federal pelo Partido Comunista do Brasil que foi colocado em ilegalidade e os mandatos dos parlamentares foram cassados. Eram vigiados e começaram a ser presos. Livros de Jorge Amado foram apreendidos como subversivos, então ele se exilou na França por um tempo, mas também perderam o permis de séjour e foram para a então Tchecoslováquia. Zélia narra o tempo em que passaram lá, as viagens para a URSS, para China e vários outros países, os amigos que fizeram, o nascimento da filha, o filho que com 2 anos falava português, francês e tcheco, etc. Ela é uma ótima contadora de "causos".

Zélia em Moscou, 1948. Foto arquivo Fundação Casa de Jorge Amado

Zélia tem uma visão mais crítica e detalhada dessas viagens, ao mesmo tempo que ela estava empolgada com tudo, ela também tinha um choque de realidade e mostrou que nem tudo eram flores. Já Jorge Amado preferiu se abster de opiniões negativas sobre esses lugares.

Começarei com a viagem para a Rússia e em seguida para a China. Tudo começou quando Jorge Amado foi laureado com o Prêmio Stalin da Paz que antes chamava Prêmio Lenin. Este prêmio parece o Nobel, criado como mea culpa, talvez. Alfred Nobel inventou a dinamite, tinha fábricas de tanques de guerra e criou o Prêmio Nobel da Paz. Como disse George Orwell, Guerra é paz.

PRÊMIO STALIN DA PAZ

Um telegrama de Ehrenburg, enviado de Moscou, anunciava a Jorge que lhe fora concedido o Prêmio Internacional Stalin da Paz.

 A cerimônia solene da entrega do prêmio a Jorge realizou-se no grande salão da Academia de Ciências da União Soviética, lotado por inúmeros amigos, escritores e altas personalidades. Ao fundo, suspensos na larga parede, enormes retratos de Lênin e Stalin. Como de praxe, o Presidente da Academia, após proferir umas palavras de louvor ao premiado, colocou-lhe a medalha no peito, entregou-lhe o diploma. Ilya Ehrenburg o saudou com palavras cálidas e afetuosas. Os dois amigos se abraçaram, emocionados.

Se você quiser saber mais sobre o Ehrenburg, deixo aqui um artigo do site Janela para Rússia que é uma ótima fonte de informação sobre este país: 5 curiosidades sobre Ehrenburg, o amigão de Jorge Amado que previu Hiroshima e deu nome a uma era.
Amado e Ehrenburg em Moscou
MOSCOU
A cada estada em Moscou eu lavava a alma, tirava a forra! Assistia aos mais maravilhosos espetáculos de teatro, espetáculos de todos os gêneros, peças representadas por grandes atores, bailes dançados pelos maiores bailarinos do mundo. Desta vez, no entanto, não pudera assistir a tudo que desejava. O tempo era curto demais para atender a tantos convites e solicitações.
Depois da premiação,  foram de trem, o Transiberiano, até a Sibéria, com duração de 5 dias e lá pegaram o avião para China.
Jorge Amado e Nicolás Guillén no Transiberiano

O CONVITE DE MEUS SONHOS
Emi Siao telefonara-lhe de Praga para anunciar que havia chegado, por seu intermédio, um convite para nós dois, da União de Escritores Chineses, visitarmos a China.
Jorge sabia do meu encanto pela China, de meu enorme desejo de conhecê-la. Durante toda a vida, desde criança, eu tivera curiosidade por esse país tão imenso e tão distante, tão cheio de magias e de belezas, sem nunca ter imaginado vê-lo de perto, assim como jamais me passaria pela mente ir à Lua, Marte ou Vênus. Para mim a China era inatingível, nada além de sonho. Após a vitória da Revolução Socialista em 1949, no entanto, passei a alimentar a esperança de uma possibilidade.
 Eles chegaram na China junto com Pablo Neruda e sua esposa Matilde:
Neruda e Matilde Urrutia
No aeroporto, à nossa espera, estavam o poeta Ai Qin, um representante do Ministério da Cultura e um intérprete de francês. Tanto nós quanto os Neruda éramos hóspedes da União de Escritores. Àquela altura, vários livros de Jorge já estavam traduzidos e publicados na China: São Jorge dos Ilhéus, Seara Vermelha e O Cavaleiro da Esperança. Terras do Sem Fim tinha sido reeditado pouco antes, e sua popularidade entre os leitores chineses crescera muito. Neruda também era muito festejado, não apenas por sua atuação política como, sobretudo, por seus poemas traduzidos para o chinês.

  

Jorge Amado, Zélia Gattai, Pablo Neruda e Matilde Urrutia recebidos por Ding Ling e outros/as escritores/as chineses em Pequim, 1957. Fonte: Tricontinental

Depois desse depoimento, ela teve o primeiro choque de realidade, enquanto atravessavam de barco de Kuo-Ming a Pequim, pelo rio Yangtze, o intérprete traduziu o jornal que estava lendo e eles perceberam que a situação política não era a das melhores. Ela começa a frase com a palavra “possivelmente”, ou seja, pode ser paranoia da minha cabeça ou pode ser pior do que eu imaginava, mas historicamente já sabemos do resultado da Revolução Cultural, se foi bom ou ruim cabe a cada um julgar por si próprio.
Possivelmente, o jornal publicava notícias que deixavam transparecer a situação calamitosa que se instalara na China: a era do sectarismo e do patrulhamento ideológico, início das perseguições, sobretudo aos intelectuais e artistas, do medo das "críticas" que podiam resultar em prisão e desterro. Fase negra da vida chinesa que viria culminar com a chamada Revolução Cultural, que atiraria ao cárcere e ao desterro os poetas Emi Siao e sua mulher Eva, o próprio Ai Qin, a escritora Ting Ling e tantos outros intelectuais amigos nossos.
Ching Ling e Pablo Neruda

Fui procurar saber mais sobre a Ting-Ling (ou Ding Ling ou Ching Ling) e achei um artigo ótimo do boletim de arte Tricontinental:  A criação é uma ação política, e um escritor é uma pessoa politizada. Ela parecia ser uma pessoa incrível.

Zélia afirmou:

Ao regressar ao Brasil, Jorge publicou na Coleção Romances do Povo, que dirigiu para uma editora do Rio, a tradução de um dos romances mais populares de Ting-Ling: O Sol sobre o Rio Sang-Geang. 

E eu questionando para mim mesma: Gente, cadê essa tradução? Ela existiu porque achei a foto da capa (imagem ao lado) nos arquivos da Cambridge University Press.
Como a curiosidade matou o gato, fui pesquisar sobre esta coleção “Romances do Povo”, nunca vi esses livros em lugar nenhum. Deparei com uma tese intitulada “A Editoral Vitória e as edições comunistas no Brasil: da legalidade ao golpe (1944-1964)”, de Vinicius de Oliveira Juberte, USP, 2023. A resposta está nos capítulos 4 e 5.

Achei algumas obras dela apenas em inglês. Penei para encontrar informações dessas pessoas ou suas obras, principalmente nas mídias ocidentais. Posso afirmar que é um apagamento histórico intencional, com a ditadura na América Latina, os livros sino-soviéticos desapareceram.
Voltarei a falar no próximo post desses escritores chineses mencionados. O plot twist quando fui consultar algumas fontes chinesas, fui atrás de informaçoes e voltei com fofocas edificantes.

Depoimento sobre a programação turística:
OS PROGRAMAS 
A União de Escritores traçara um roteiro para nossa estada: além de Pequim, viagens a Hang-Zhou e a Xangai. Em Pequim visitaríamos o Palácio de Verão, o Palácio Imperial, a Cidade Proibida com o Templo do Céu e o Templo da Terra, iríamos ver de perto a Grande Muralha. Seríamos recebidos na União de Escritores para um encontro com ficcionistas e poetas, e, nos roteiros noturnos, o forte seria o teatro. Pedimos que incluíssem no programa algumas tardes livres, queríamos sair andando pelas ruas ao deus-dará, sem compromisso, como tanto gostamos de fazer. 
A GRANDE MURALHA

A pessoa que nos acompanhara na visita à Grande Muralha sabia tudo sobre a construção daquela obra única, construção que data de três séculos antes de Cristo.

Se a distância ela me impressionara, parecendo-me uma serpente descomunal, de perto me esmagara. Nosso acompanhante devia ser um especialista no assunto, sabia na ponta da língua datas, cifras, dimensões… Tudo muito instrutivo, mas eu não conseguia prestar atenção ao que ele dizia, no estado de emoção em que me encontrava. Aliás, sempre fui de opinião que explicações diante de uma obra de arte, em vez de ajudar, atrapalham. Nas excursões, por exemplo, enquanto o guia turístico dá sua aula ao grupo que o acompanha, as pessoas, ao prestarem atenção ao que ele diz, deixam de apreciar, livremente, de se emocionar diante de um quadro ou de uma escultura, para em seguida esquecer todas as datas, locais, títulos de nobreza etc. que o erudito guia lhes declamou momentos antes.

Foram conhecer o atelier do Qi Baishi, levou um tempo para eu entender que em português se fala Chi-Pai-Che. Eu tenho um livro de artes dele, eu fiquei até emocionada com o privilégio que eles tiveram de conhecê-lo e de adquirir suas obras. Também fiquei chocada ao saber (contra a minha vontade) que ele era eunuco. 

Qi Baishi, pintor (1864-1957) + monumento em sua homenagem em Xiangtan, província de Hunan

CHI-PAI-CHE

Ainda existia em Pequim, como já disse, comércio privado, sobretudo de casas de antiguidades. Foi numa dessas lojas que Jorge comprou dois quadros de um pintor famosíssimo, Chi-Pai-Che, considerado um dos maiores artistas contemporâneos da China.

O governo chinês quis homenagear Jorge, que vinha de receber o Prêmio Stalin da Paz, oferecendo-lhe um quadro pintado especialmente para ele por Chi-Pai-Che, com o tema da paz. Certa manhã nos levaram à residência do artista, ele pintaria o quadro em nossa presença. O pintor já passara dos noventa anos e apenas pela manhã tinha energia para pintar. Abriu-nos a porta um ser estranho, um velho eunuco, empregado da casa. Fora castrado em criança para servir no harém do Imperador.

Operação que Chi-Pai-Che realizou em pouco mais de uma hora, sobre a folha de papel virgem. Alcançara, com suas mãos trêmulas, o milagre de transformá-la, diante de nossos olhos, em obra de arte. Com pinceladas firmes, sem nenhuma vacilação, conseguira traçar linhas puras, fizera nascer maçãs frescas e coloridas e um casal de pombos enamorados. Em chinês, hou é pombo e ping, maçã — hou ping significa paz.

Ela gostava de brincar com os amigos chineses sobre a procedência do macarrão. 

BERÇO DO MACARRÃO

Comentei com Liú: — Garanto que na Itália, berço do macarrão, não existem espaguetes deste tamanho… Pelo menos eu não vi…

Senti que Liú ficou picado: — A Itália, berço do macarrão? A camarada está muito enganada… A massa de farinha e ovos, o macarrão, nasceu na China. Quem o levou para a Itália foi Marco Polo.

Nas três viagens que fizemos à China, repeti a brincadeira, provocando os amigos chineses, tirando-lhes a paternidade do macarrão, dando-a aos italianos, que a honram tanto.
As provocações foram sempre revidadas em seguida, cansei de ouvir a história de Marco Polo, o andarilho veneziano que gostou tanto da pasta chinesa que até a levou para a Itália.
Muito me impressionou a forma realista, pé no chão que ela descreveu sobre suas experiências vividas.

Zélia e João embarcando para Europa, 1948. Foto arquivo Fundação Casa de Jorge Amado
Nesse porto de Gênova eu desembarcara em 1948, com uma criança nos braços, no peito muito amor e muita coragem. Houve quem me tachasse de irresponsável, ao ver-me sair mundo afora ao encontro de meu companheiro com um filho pequeno. Agora, em 1952, neste mesmo porto de Gênova, ao partir de volta para casa, eu já não era a moça ingênua que lá aportara, cheia de ilusões, sectária, limitada, com uma visão idealista do mundo. Vivera um tempo longo de saudade e de nostalgia, um tempo dramático de guerra fria, macarthismo, stalinismo, injustiças, desconfianças, acusações e delações: o medo desenfreado condicionando a existência das pessoas. Passara a conhecer melhor a vida. Não fora fácil, mas a gente vai aprendendo sem parar, apanhando para aprender: eu apanhei bastante.
Sofri, mas também tive os melhores momentos de minha vida: pela mão de Jorge corri mundos próximos e distantes, conheci povos e países, convivi com grandes homens, de alguns deles me tornei amiga. Voltava outra mulher, amadurecida, cabeça arejada, disposta a seguir meu rumo sem vacilações.
Na versão de Jorge Amado no livro "Navegação de cabotagem - apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei", é exatamente o que está descrito no título, não tem pretensão nenhuma em escrever memória. Ele declara logo no primeiro capitulo "Moscou, 1952":
Ilya me diz: Jorge, somos escritores que jamais poderemos escrever memórias, sabemos demais. 

 Durante minha trajetória de escritor e cidadão tive conhecimento de fatos, causas e consequências, sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva. Deles soube devido à circunstância de militar em partido político que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade, desenvolvendo inclusive ações subversivas. Tantos anos depois de ter deixado de ser militante do Partido Comunista, ainda hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a atividade do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo real chega a seu triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso assumido de não revelar informações a que tive acesso por ser militante comunista. Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância e não traga consequência alguma, mesmo assim não me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança. Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotações, morrem comigo.

O livro dele foca mais em anedotas, no contato com as pessoas que conheceu e choques culturais. No capítulo “Pequim,1987”, ele pergunta ao tradutor Fan Weixin como ele traduziu as patifarias de Vadinho de Dona Flor e seus Dois Maridos e ele respondeu: - Ao pé da letra. 
Depois perguntou à Ting-Li, esposa do Ho-Ping que leu Dona Flor em chinês e inglês, o que ela achava das traduções, ela respondeu:
— Ambas são boas, gostei das duas. Em inglês a história é mais picante, em chinês é mais romântica. Para você ter uma ideia da singularidade de cada uma: em chinês Dona Flor chama Vadinho de volta com o coração, em inglês ela o chama com aquilo que tem debaixo das calcinhas.

— E como se diz em chinês aquilo que ela tem debaixo das calcinhas?

Ting Li sorri, encabulada, pronuncia uma palavra, soou-me linda, um trino de pássaro, me esqueci, que pena.
Moscou, 1957.
Dá gosto ver em Moscou, no Parque Gorki, jovens casais a curtir Puskin e Iessenine, as cabeças encostadas, mãos entrelaçadas nas páginas de um livro.
Outra vez foi em Moscou, vai mais distante. Eram os tempos da abertura de Kruchev, no Teatro de Sátira davam uma peça sobre Maiakowski, a vida do poeta contada através de seus poemas. O texto da peça era composto somente com versos de Maiakowski e com as acusações feitas à sua poesia pelos críticos ideólogos — críticos e ideólogos defecavam insultos e catilinárias de duas latrinas situadas no alto do cenário, crítica latrinária, o asco. No palco quatro atores viviam quatro diferentes Maiakowski: o revolucionário, o amante, o surrealista, qual o quarto? Ou seriam apenas três?
Não falo nem entendo a língua russa, mas a força tão profunda da poesia mexeu com minhas tripas, comovi-me quase às lágrimas. Jamais esquecerei o momento em que Maiakowski suicida penetrou no palco para se dar à morte: entrou declamando o poema com que inculpou Iessenine por se ter suicidado. Arrepiado ouvi.
Jorge Amado, Nazim Hikmet (Turquia), Emi Siao (China), em Moscou, 1953.

Moscou, 1954.
Ele conta que após a derrota da Alemanha, os vinhos da adega do Goebbels, ministro da Propaganda e da Informação na Alemanha nazista, foram postas à venda:
A garrafeira de Goebbels, a maior da Europa, a mais rica em vinhos de classe, confiscados das reservas, das caves mais bem servidas dos países vinícolas ocupadas pelas tropas hitleristas, sobretudo da França. Guardados durante quase dez anos, transladados para anônimas garrafas, em todas o mesmo rótulo: vinho, sem qualquer outra indicação, foram postas à venda por preço mais barato do que o pago pelos vinhos da Moldávia ou da Geórgia.

A família do Ilya saiu em bando para comprar os vinhos. Ilya tinha uma gravura de Pablo Picasso, intitulada Le Crapaud.

Ao bater os olhos no quadro, sapo disforme, desintegrado, o homem do Pravda, teórico do realismo-socialista, estremece nas bases, desvia a vista da ignomínia: a isso os capitalistas chamam arte, exclama à beira da apoplexia. Como é possível que o camarada Eremburg pendure tais excrescências, podridão da burguesia, nas paredes de seu apartamento? E esse tal de Picasso se diz comunista, é o cúmulo.
Ilya interrompe-lhe a catilinária:
— O camarada sabe o título dessa gravura, o que ela representa?
— Não, não sei... O que sei...
— Representa o imperialismo norte-americano.
Humaniza-se o ideólogo, volta a contemplar o quadro, balança a cabeça, livre da ameaça de infarto, pratica a autocrítica:
— O imperialismo norte-americano? Agora entendo, Picasso é membro do Partido francês, não é? Camarada direito, que talento!
No capítulo “Moscou, 1954, complô”, ele conta que a escritora alemã e membro do júri do Prêmio (Stalin) Internacional da Paz, Anna Seghers, pediu encarecidamente aos outros colegas do júri para colocar o nome do Bertolt Brecht na lista dos indicados, pois ele estava sendo perseguido pelo pecê alemão e se ele ganhasse, o pecê o deixaria em paz.
Pablo Neruda, Jorge Amado e Anna Seghers em Paris, 1949
Fosse como fosse, Bertolt Brecht teve o prêmio, o pecê alemão arrepiou carreira, desistiu de incomodá-lo. Incomodar, verbo fraco, nem de longe dá ideia das misérias a que o sujeitariam, o poço de infâmias em que o afundariam.
Parece que o “jeitinho brasileiro” não é so brasileiro. Para mim, todos os prêmios Nobel, Oscar, etc. é tudo à base de panelinha. 
No capítulo "Moscou, 1951", ele fala do tradutor Fedor Keliin:
A Fedor Keliin muito deveram as literaturas de línguas portuguesa e espanhola, hispanista histórico traduziu e divulgou na URSS autores da península ibérica e da América Latina. Houve quem o criticasse por colocar métrica e rima nos poemas de versos livres de Neruda — em russo sou êmulo de Puskin, graceja Pablo —, a verdade é que o bom Keliin se bateu por nossas letras junto às editoras e às revistas literárias. Nos idos de trinta se batia por Eça de Queiroz sem obter êxito, as editoras fechavam as portas ao romancista português.

Capa do livro "Dona Flor e seus dois maridos" em russo, parece aqueles romance hot de banca dos anos 80. 

Falando em tradução, não é à toa que existe o provérbio “tradutor, traidor”. Não apenas na China, mas também na Rússia, as obras de Amado sofreram grandes modificações. Segundo Marina Darmaros descreve em seu artigo, havia cortes em trechos mais sensuais da obra e:

A qualidade das traduções na URSS, porém, é posta em jogo, por vezes, devido a uma quase literal “corrida tradutória” que se trava no país.
Conquanto estavam desobrigadas de royalties, de contratos e até da fidelidade ao original, cortando e adaptando quanto e a que propósito quisessem as obras estrangeiras, por isentas da Convenção de Berna, as editoras, ainda por cima, corriam com as traduções para serem as primeiras a publicar as obras. São Jorge dos Ilhéus, por exemplo, sai com um terço do volume original, traduzido do espanhol, e intitulado “Terra dos frutos de ouro”.
Para ler o artigo completo:
Darmaros, M. (2017). Por que ler Jorge Amado em russo: a cultura soviética revelada na tradução de Gabriela. Tradterm, 28, 223-248. https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v28i0p223-248

Vou deixar um outro artigo sobre a recepção dos leitores às obras de Jorge Amado na URSS e Rússia:
Elena Beliakova. Jorge Amado e a literatura brasileira na Rússia. Universidade Federal de Tcherepovets, Rússia. https://doi.org/10.4000/amerika.4546
Beliakova também escreveu outro artigo: Jorge, bem amado pelos russos

No capítulo "Pequim, 1952", ele conta que foi à Ópera de Pequim e traduziu tudo errado para os amigos. Com esse tipo de amigo, quem precisa de inimigo, não é mesmo?
Logo na primeira noite de Pequim, deslumbrados, Rosa e Nicolás Guillén, Zélia e eu fomos levados ao teatro para assistir à representação de uma ópera milenar — tudo na China é milenar, o recente tem quinhentos anos. A ópera de Pequim assistida in locum em nada se parece com o espetáculo circense, em geral de alta qualidade, que percorre o mundo sob o mesmo nome. Na China é peça de teatro, texto poético, música estridente, o povo adora. Na sala repleta, os espectadores bebem chá, comem bananas, chupam tangerinas, mascam sementes de abóbora e amendoins enquanto os atores evoluem no palco. Para nós tudo é novidade e encanto.
Naqueles idos eu armava as piores molecagens aos meus amigos, algumas divertidas, outras de mau gosto, quem conviveu comigo foi vítima. Assim o fiz na noite da ópera de Pequim ao ver Nicolás e Rosa em desespero querendo saber o que se passava no palco.
Nicolás e Rosa ficaram na minha dependência, eu lhes repetia em espanhol o que Liu, nosso intérprete, meu e de Zélia, nos traduzia em francês, aliás não repetia nada do que Liu dizia — inventava outra história, e que história! Da mais baixa pornografia.
Decorridos alguns dias fomos recebidos, os quatro, na União dos Escritores Chineses, encontro com os maiorais da literatura e das artes, do teatro e do cinema, com os ideólogos do Partido. Falamos sobre Cuba e Brasil, Nicolás declamou em espanhol, tudo bem, gentilezas, elogios a granel, solidariedade revolucionária, para finalizar os companheiros chineses pediram que opinássemos sobre o que nos era dado ver na República Popular da China.
Nicolás, porém, atendendo à solicitação feita, reclamou um esclarecimento: não entendia por que punham em cena num teatro de Pequim ópera como aquela a que assistira, por que motivo? 
O ideólogo explicou que realmente o conteúdo da ópera era um tanto quanto feudal, o argumento situava-se em passado distante.
Não se tratava de feudalismo e sim de pornografia, replicou Guillén.
Pornografia? Não estou entendendo — estranhou o porta-voz do pecê chinês. Não consegui me conter, o fou-rire se me escapou e descabido ressoou no auditório da União de Escritores. Nicolás fuzilou-me com o olhar, buscou o que dizer, a indignação não lhe permitia encontrar as palavras de cólera para me insultar e condenar. Fitou-me, eu ria, Zélia ria, Rosa entendeu e riu seu riso sonoro das Antilhas, de repente aconteceu o imprevisível, Nicolás se juntou a nós na gargalhada, poucos sabiam rir com tanto gosto. Compadre, me disse entre frouxos de riso, nunca mais vou acreditar em ti.
Discretos, os chineses não fizeram perguntas, mas Rosa exigiu de Zélia o entrecho verdadeiro da ópera, queria saber tintim por tintim a história das guerras e dos amores do Imperador da China e da Favorita, fiel e devotada, casta.

No capítulo Moscou, 1953 - O pranto, ele fala de uma tentativa de assassinato de Stalin orquestrada pelos estadunidenses e médicos judeus:

Desço do avião que nos traz de Viena, a Zélia e a mim, são cinco horas da tarde, noite fechada em Moscou, inverno rude, estamos em janeiro de 1953, voltamos à União Soviética pela primeira vez desde o regresso ao Brasil. Alguns amigos nos esperam no aeroporto, entre eles Vera Kutekhkova, a animação em pessoa: vai nos servir de intérprete durante nossa estada.

Vera Kutekhkova, hispanista russa, membro da Academia de Ciências da URSS e seu esposo Lev Ospovat, hispanista russo, 1980.

Já éramos amigos por correspondência quando nos conhecemos pessoalmente em 1948. Responsável pelas literaturas de línguas espanhola e portuguesa no Instituto Gorki de Literatura Universal, Vera escrevera um ensaio sobre meu trabalho, publicado numa coleção de plaquetes editada pelo Pravda. Para Zélia e para mim, Vera e seu marido Lev, hispanista renomado, autor de livros sobre Lorca, Neruda e Diego Rivera, são nossa família soviética, não precisamos falar para nos entender.
Vera vem tomar conosco o café da manhã, no hotel. Estendo-lhe o exemplar do Pravda, peço-lhe tradução imediata da manchete que ocupa todo o alto da página, parece-me notícia importante. Vera lera o jornal antes de sair de casa, ainda assim, em vez de adiantar a informação, toma da gazeta, traduz. Trata-se do anúncio da descoberta de infame complô norte-americano para assassinar Stalin. Os imundos, os monstruosos agentes da conjura são os médicos, os médicos mais eminentes da URSS, que têm a responsabilidade de zelar pela saúde dos potentados do Kremlin — todos eles judeus, informa o Pravda.

De boca aberta, sem saber o que dizer, o que pensar, vejo Vera em minha frente. Parada, cerra as mãos, morde os lábios, o pranto escorre de seus olhos: não precisamos falar para entender.

 Moscou, 1948 - O incondicional: o português fanático pela ideologia.

Francisco Ferreira, português, trabalha na Rádio de Moscou ao lado de Satva Brandão nas emissões de língua portuguesa, alimenta com ideologia e notícias alvissareiras os camaradas do Brasil e de Portugal, das colônias salazaristas da África. Jovem comunista, participou das Brigadas Internacionais na Guerra da Espanha, com a derrota foi evacuado para a União Soviética. Casou-se com espanhola, é competente radialista, pessoa simpática, cordial e expansiva, capaz de solidariedade humana, como deu provas na dedicação com que se devotou à irmã e à filha de Prestes, Lígia e Anita, exiladas na capital soviética Membro exemplar do partido português, seu sectarismo não tem limites, é total.

Pela primeira vez na URSS, procuro me informar sobre a vida, os costumes, as benesses e as mazelas.

— Ladrões? — O bom Ferreira se exalta: — Na pátria do socialismo, o roubo não existe. Ladrão é coisa do passado, do czarismo.

Na véspera, em armazém do GUM tentaram roubar a bolsa de Zélia por duas vezes, Vera Kuteichkova nos havia recomendo: todo cuidado é pouco, os ladrões pululam. Desmascaro o informante: não seja mentiroso, Chico. Mas o patriota Ferreira não dá o braço a torcer:

—Existem ladrões, sim, não vou esconder, são sobras da guerra. Em compensação são os ladrões mais hábeis do planeta. Na semana passada tomei um ônibus na hora do almoço, ia lotado, só em casa me dei conta: tinham roubado tudo que eu levava em cima de mim, cortaram-me o sobretudo com lâmina de barbear, trabalho tão bem feito, nem senti. Ladrões tão capazes você não vai encontrar em nenhuma parte. — No acento luso o orgulho soviético.

Comentamos as diferenças nos hábitos da vida sexual no ocidente capitalista e no leste socialista. Nosso Ferreira é peremptório:

— Essas degenerescências não existem na União Soviética. — Refere-se ao hábito do adultério: — As mulheres soviéticas são fiéis aos maridos, a moral proletária é rígida, você sabe. Uma aventura, um deslize, infidelidade conjugal — coisas raríssimas, de se contar nos dedos.

As informações que já possuo, de escritores e de operários, faço amigos por onde passo, contradizem a afirmação do incondicional Chico Ferreira. Mais uma vez o desmascaro com bonomia, pois na falsa informação do comuna português não vejo outras intenções além do desejo de salvaguardar a imagem da URSS, para ele sagrada: para ele e para mim, para milhões e milhões na vastidão do mundo.

— Não seja cínico, Chico. As mulheres daqui dão sem que seja necessário se pedir, quem bem sabe é você que vive em ambiente de rádio propício, favorável à putaria. Quer que eu lhe cite exemplos?

 Já no capítulo “Cantão, 1952 - O que sabe melhor”, fala da cultura de comer cachorro:

Na ida para o restaurante Ilya exige que Ting Ling lhe esclareça uma curiosidade: qual a carne de cachorro a saber melhor, a dos criados em cativeiro nos canis dos restaurantes, engordados para o forno e o fogão, ou a dos vira-latas caçados nas ruas pelos pobres?

O hábito dos chineses de prepararem pratos com carne de cachorro — iguaria predileta nas casas de pasto de Cantão, só as serpentes gozam de fama igual — horrorizava Eremburg, que criava com mimos, em seu apartamento de Moscou, três schnawzers de estimação. Posso entender a repugnância de Ilya, até hoje não aceitei provar carne de cavalo.

— Quais os mais saborosos?

Ting Ling furta-se à resposta, busca escapatória, fala de outras excelências, teatro, bale, a flor-de-lótus, Ilya implacável insiste. Por fim a romancista, sem porta de saída, cansada de subterfúgios, baixa a voz, murmura entre dentes:

— Prefiro os vira-latas, a carne é mais saborosa.

Restaurante especialista em pato laqueado, os chineses refinados comem apenas a pele crestada, jogam a carne fora, Ilya come pele e carne, com apetite, nenhuma restrição se lhe escapa dos lábios enegrecidos pelo molho ferrugem. Nem a ele nem a mim: comemos pato e porco, boi e cabrito com gula e gosto, não comer cachorro, cavalo, serpente, apenas preconceito.

Achei que fosse um preconceito ocidental de que chinês come cachorro, então fui no Baidu, o google da China e descobri que comem mesmo, é uma cultura milenar. Eu que nem carne como fiquei chocada, mas ao mesmo tempo tenho a mesma opinião do Amado, que diferença faz comer porco ou cachorro?


O título do artigo é: Há um velho ditado que diz que "cachorro velho tem medo do solstício de verão". Por que os chineses comem carne de cachorro durante o solstício de verão? Qual é o significado?
O artigo mostra que tem havido muitas controvérsias nos últimos anos, especialmente o incidente do "Festival de Carne de Cachorro e Lichia" em Yulin, que gerou uma enorme polêmica interna. A mídia ocidental também aproveitou isso para aumentar a "polêmica" sobre os chineses comerem carne de cachorro.
 

De acordo com uma reportagem de 2016 do El País, 30 milhões de cães são consumidos em todo o mundo a cada ano, e quase metade deles está na China.
É claro que o costume de comer carne de cachorro não ocorre apenas em alguns lugares da China, mas também no nosso país vizinho, a Coreia do Sul.
No entanto, como um país com uma grande população, o costume chinês de comer carne de cachorro se intensificou. Ao longo dos anos, o debate sobre o consumo na China nunca parou. Algumas pessoas acham que comê-la é natural, enquanto outras acham que é uma prática desumana.
O costume de comer carne de cachorro na China tem uma história milenar. Especialmente quando chega o solstício de verão, essa carne é frequentemente mencionada, assim como o "Festival da Lichia e da Carne de Cachorro" em 18 de junho, o solstício de verão em Yulin. Há um antigo ditado popular que diz que "cachorros velhos têm medo do solstício de verão", o que reflete vividamente esse costume.Acredita-se que comer carne de cachorro durante o solstício de verão pode afastar espíritos malignos, nutrir o corpo, resistir a pragas, fortalecer o corpo e aumentar a resistência física. O corpo será capaz de resistir à invasão viral, resistir à invasão de ventos fortes e chuvas pesadas e reduzir o risco de doenças.
Durante as dinastias Qin e Han, o costume de comer carne de cachorro era predominante. Naquela época, todos, desde a família real até os ministros e o povo, gostavam de comê-la e se tornou quase o alimento mais comum na mesa. As pessoas  comiam assim como hoje comem carne de porco e frango. Era bastante popular.
Em certas épocas do passado, a carne de cachorro era muito mais barata do que outras carnes, como a de porco, e era mais fácil e conveniente de obter.
Por exemplo, os habitantes de Yulin têm o costume tradicional de comer carne de cachorro. Nas décadas de 1960 e 1970, o preço da carne de porco era relativamente alto e a oferta, muito limitada. Nem todos com dinheiro podiam comê-la, muito menos aqueles sem dinheiro.
Os coreanos também comem carne de cachorro, principalmente porque, no passado, era difícil para eles obter carne suficiente para repor energia. Como todos sabemos, a Península Coreana é uma região costeira. No passado, quando a produtividade era relativamente baixa, o transporte era inconveniente e a terra e os materiais eram escassos, era difícil para as pessoas obterem carne de alta qualidade em quantidade suficiente.

Video

Como Jorge Amado e Dorival Caymmi encantaram geração inteira na URSS

Estas foram as impressões da Zélia e Jorge nas andanças pela URSS e China. No próximo post, se ainda existir mundo, vou trazer as fofocas de seus amigos comunistas que não valiam um centavo. No post seguinte ao próximo vou colocar a opinião do Jorge Amado sobre a Índia, só faltou ele ir para África do Sul para completar os países do BRICS.